Períodos de anomalia são tradicionalmente conhecidos como particularmente propícios ao cometimento de atos de corrupção e ilícitos de todo tipo. Não é de causar espanto, portanto, que a Medida Provisória 966, publicada em 13 de maio de 2020, tenha sido recebida com tanta desconfiança e mesmo hostilidade.
A norma em comento, no seu artigo 1º, estabelece que a responsabilização civil e administrativa de agentes públicos somente se verificará mediante a comprovação de dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública ou o de combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19”. A Medida Provisória estabeleceu, portanto, hipóteses de responsabilidade civil subjetiva agravada, o que se mostra totalmente anacrônico com relação ao desenvolvimento da responsabilidade civil.
Com efeito, as profundas mudanças estruturais ocorridas na sociedade contemporânea, tais como a revolução industrial, o progresso científico e a explosão demográfica das grandes cidades, demonstraram, ao longo dos anos, a insuficiência da culpa como fundamento do dever de indenizar. Passo a passo, verificou-se que a responsabilidade objetiva, fundada sobre a mera existência de dano e do nexo de causalidade, passou a ser prestigiada em detrimento da responsabilidade subjetiva, que demanda a comprovação da existência de negligência, imprudência ou imperícia para a sua comprovação.
A Medida Provisória, contudo, caminhou em sentido diverso, estabelecendo uma responsabilidade que depende de culpa grave e erro grosseiro para que seja configurada. O erro grosseiro foi definido, no art. 2º da norma, como “erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”. Não é difícil perceber que culpa grave e erro grosseiro são termos de conceituação jurídica extremamente vaga e que poderiam significar salvo conduto para o cometimento de ilícitos por parte dos agentes públicos, aqui considerados como todos aqueles que se encontram a serviço da Administração Pública, independentemente do modo como ali ingressaram.
Em acréscimo, a norma se encontra em evidente desencaixe com o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, que estabelece a responsabilidade dos agentes públicos nos casos de dolo ou culpa, sem qualquer diferenciação no que tange ao grau da culpa. Por outro lado, a referida norma retoma e aprofunda o obscuro artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que, após modificação trazida pela Lei 13.655/2018, prevê a responsabilidade pessoal do agente público apenas em caso de dolo ou erro grosseiro.
Como haveria de se esperar, a Medida Provisória gerou grande controvérsia, e foi alvo de sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), que abrangem também o mencionado art. 28, da LINDB, e cujos pedidos de liminar foram julgados essa semana pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.
O relator, Ministro Luís Roberto Barroso, propôs uma interpretação do art. 2º conforme a Constituição, para que se configure como erro grosseiro o ato administrativo que implicar em violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado em decorrência de inobservância de normas e critérios científicos e técnicos. Foi afastada, ainda, a aplicação da Medida Provisória a atos de corrupção e de improbidade, que continuarão sendo regidos por legislação própria. O referido voto foi acompanhado integralmente pelos Ministros Edson Facchin, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Levandowski, Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Foram parcialmente vencidos os Ministros Alexandre de Moraes e Cármen Lucia, que acompanharam o relator em relação à tese, mas que pretendiam a suspensão da eficácia do artigo 1º caput, e seu inciso II (que se refere aos impactos econômicos da pandemia). O Ministro Marco Aurélio, com voto integralmente vencido, ambicionava pela suspensão da eficácia da Medida Provisória, ao entender que esta traria uma limitação de responsabilidade em contrariedade ao previsto constitucionalmente.
Em conclusão, houve a concessão parcial da medida cautelar nas ADIs, restando estabelecido que os agentes públicos devem se pautar pelos princípios da prevenção e da precaução, mormente diante de dúvida sobre a eficácia ou benefício das medidas a serem implementadas. O conceito de erro grosseiro foi recomposto a fim de ser identificado em todos os atos que forem contrários ao estado atual da tecnologia e da ciência.
Os próximos meses poderão dizer, na prática, os efeitos da Medida Provisória 966/2020, bem como da decisão ora em análise.
Vaneska Donato de Araujo
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