Foi publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo, no dia 12/12/2023, o Decreto n° 68.178/2023 que promoveu a inclusão do artigo 49, no Anexo III, do RICMS/SP, de forma a conferir ao produtor rural localizado no Estado de São Paulo que promover a saída interna de produção própria com não incidência do ICMS ou isenção, a opção pelo crédito outorgado, para fins de transferência ao adquirente da produção, equivalente a (i) 1% do valor da saída de café cru, em grão ou em coco, ou ainda, de (ii) 2,4% do valor das saídas das demais mercadorias, sendo condicionado tal benefício ao não aproveitamento de quaisquer outros créditos e ao ressarcimento, por parte do adquirente, em moeda corrente, mercadorias ou serviços, do valor do crédito transferido pelo produtor paulista.
Tal benefício, já disciplinado pela PORTARIA SRE-03/24, é uma cola do benefício contido nos itens 28 e 29, Parte 1, Anexo IV, do RICMS/23, do Estado de Minas Gerais, como autorizado pela Lei Complementar n.º 160/2017, Convênio ICMS n.º 190/2017 e artigo 112, da Lei Estadual Paulista de n.º 6.374/1989, a fim de conceder ao produtor rural do Estado de São Paulo o mesmo benefício disponibilizado ao produtor mineiro.
No entanto, embora seja louvável a iniciativa do Governo de São Paulo em incentivar os produtores locais, especialmente diante do aumento vertiginoso dos defensivos agrícolas e fertilizantes, há pontos nessa nova legislação que merecem atenção.
Nessa linha, o primeiro ponto de reflexão é a extensão do benefício paulista, sobretudo por se tratar de uma cola do benefício mineiro. E isso porque, o § 7º, do artigo 3º, da LC 160/17, determina que as unidades federadas “poderão estender a concessão de benefícios fiscais a outros contribuintes estabelecidos em seu território, sob as mesmas condições e nos prazos de fruição”.
Ocorre que o benefício mineiro é destinado ao produtor rural pessoa física, ao passo que na cola paulista o destinatário é o produtor rural, ou seja, não fica claro se é para pessoa física e jurídica ou somente para pessoa física. Uma resposta, obviamente sujeita a críticas, pode ser extraída do artigo 4º, inciso VI e §§ 1º e 2º, do artigo 32, ambos do RICMS/SP, segundo os quais é ‘produtor rural, a pessoa natural dedicada à atividade agropecuária que realize operações de circulação de mercadorias, ainda que em sociedade em comum com outros produtores, também pessoas físicas’.
Para dirimir a dúvida, vale lembrar que a sociedade em comum é uma espécie de sociedade desprovida de personalidade jurídica (sociedade de fato), prevista nos artigos 986 a 990 do Código Civil. Reforçando esse caráter, o §2º do artigo 32 do RICMS, impõe às sociedades em questão, como condição à fruição da condição de produtor rural, que (i) tenham como sócias apenas produtores rurais; (ii) não sejam inscritas no Registro Públicos de Empresas Mercantis; (iii) exerçam profissionalmente atividade agropecuária, de extração e/ou exploração vegetal ou animal, de pesca ou de armador de pesca.
Embora seja inegável que o produtor rural, individualmente ou mediante associação com outros produtores (por exemplo, em contrato de parceria), exerça atividade mercantil, sujeitando-se à obtenção de inscrição estadual, inscrição no CNPJ e cumprimento de obrigações tributárias, a formalização de eventual sociedade (como uma limitada) retira a sua condição de produtor rural, inclusive para efeitos do benefício fiscal ora em exame.
Aliás, há solução de consulta recente da SEFAZ/SP trazendo esse esclarecimento: “RESPOSTA À CONSULTA TRIBUTÁRIA 28747/2023, de 08 de novembro de 2023. (…) 4. Isso posto, convém esclarecer que o inciso VI do artigo 4º do Regulamento do ICMS (RICMS/2000) considera que produtor rural é pessoa natural dedicada à atividade agropecuária que realize operações de circulação de mercadorias, estando sujeito à exigência de inscrição no CADESP, conforme artigo 32, caput e § 1º, do RICMS/2000. 5. Nesse ponto, observa-se que, ainda que esta Consultoria Tributária já tenha se manifestado no sentido de que a exigência de inscrição estadual e de registro junto ao CNPJ para cumprimento de obrigações acessórias não descaracterize a condição de pessoa natural, há de se observar que o produtor rural é contribuinte do imposto, nos termos do artigo 9º do RICMS/2000, sujeito, portanto, às obrigações tributárias previstas na legislação”.
Nesse sentido, é possível concluir que o benefício paulista tem como destinatário somente o produtor rural pessoa física, individual ou organizado em sociedade em comum (sociedade de fato), notadamente quando analisados os dispositivos regulamentares mencionados anteriormente. Ademais forçoso reconhecer que como se trata de uma cola do benefício mineiro, deveria a legislação paulista, salvo melhor juízo, conceder o crédito outorgado nas mesmas condições do benefício mineiro. Interpretação em sentido diverso, ou seja, que estenda o benefício a sociedades empresárias, desborda do limite imposto à chamada cola regional pelo artigo 3º, §8º da Lei Complementar 160/2017, e, por conseguinte, violando a sistemática de concessão de benefícios fiscais em matéria de ICMS prevista na Lei Complementar 24/75 e no artigo 155, §2º, XII, ‘g’ da Constituição Federal.
Outra polêmica, potencialmente mais grave que a precária cola paulista, é o fato de o benefício ser custeado pelo adquirente paulista (art. 1º, Portaria SER 03/24) que deverá ressarcir o produtor rural do valor correspondente ao crédito recebido em transferência.
Trata-se, em verdade, por parte do Estado de São Paulo, e, da mesma forma, de Minas Gerais, de uma cortesia com o chapéu alheio, pois a conta, em rigor, será paga pelas cooperativas, exportadores, armazéns gerais e indústria, tornando a operação mais onerosa financeiramente e dispendiosa em termos de obrigações acessórias, sem falar da possibilidade de um eventual desgaste comercial entre os contribuintes (produtores e intermediários), mais do que isso, da possibilidade do ressarcimento ser abatido do preço a ser recebido pelo produtor rural.
Nesse contexto, como reflexão, como efeito adverso desse benefício, pode ser que faça mais sentido para os intermediários (indústrias, cooperativas, entre outros) a compra de produtos agropecuários com isenção e não incidência somente de produtores não aderentes ao crédito outorgado previsto no novel artigo 49, Anexo III, do RICMS/SP, de maneira a não impactar o fluxo de caixa da operação com o ressarcimento ao produtor rural paulista.
Enfim, é possível que seja mais vantajoso para a indústria de transformação (e demais adquirentes do art. 1º, Portaria SRE 03/24) refutar o crédito outorgado do artigo 49, Anexo III, do RICMS/SP, do que minar o caixa com o desembolso de valores expressivos para o ressarcimento do crédito, sem esquecer do assoberbamento das obrigações acessórias previstas nos artigos 3º e 4º, ambos da Portaria SER 03/2024 que é sempre um fantasma a mais para o dia a dia das empresas.